segunda-feira, abril 26

Do outro lado da rua

Todo hospital, em um primeiro momento, é uma incógnita, um pujante ponto de interrogação. Por mais que se conheça muito bem, o hospital que você deixou uma vez jamais será o mesmo que você encontrará depois. E conhecendo-se pouco, o ponto de interrogação ganha ares mais nefastos para aqueles que diante de um hospital encontram-se pela primeira vez. Em ambas as situações, entretanto, os protagonistas interagem com o ambiente, influenciam-no da mesma forma que foram por ele influenciados, compondo assim o ambiente hospitalar. Então surge a questão: como descrever esse composê a primeira vista, sem ousar fazer qualquer interferência? Foi em busca de uma resposta e com a ousadia de tornar-se daquele meio onisciente que o grupo Pauta PUC lançou-se a campo e decidiu encarar esse desafio de um novo ângulo, por outro lado – o outro lado da rua.


A jornada do Sem Contra Indicação inicia-se no quadrilátero das ruas Dona Veridiana, Jaguaribe, Marquês de Itu e Dr. Cesário Mota Jr., no distrito paulistano da Consolação. Muito mais do que um simples hospital, abraçada por essas ruas está uma parte das instalações de uma instituição filantrópica e particular com mais de quatro séculos que conta hoje com 2.000 leitos distribuídos em sete hospitais, três centros de atendimento médico, um colégio e uma faculdade: a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

No ato de entrevistar os pedestres que transitavam pela rua Dr. Cesário Mota Jr., a qual conta com um intenso fluxo de pacientes, ambulâncias e viaturas, nota-se certo consenso entre eles no que diz respeito a visão de cada um sobre a Santa Casa. A maioria dos entrevistados já haviam, inclusive, sido atendidos no próprio hospital.

Paulo (32 anos), ajudante geral e morador das redondezas do hospital, ressalta que ali o movimento é bastante intenso. Ao ser questionado sobre a sua impressão sobre o hospital, ele respondeu que já precisou buscar atendimento na Santa Casa e concluiu que “é um hospital bom, apesar de ser precário em algumas coisas”. Porém, Paulo prefere dirigir-se às outras unidades, pois o atendimento na Santa Casa é demorado. O porteiro de um prédio da rua Dr. Cesário Mota Jr., Sebastião Lima (48 anos), também aprova o tratamento que recebeu no hospital tanto pelos estudantes, como pelos médicos que trabalham no local.

O estudante do último ano de enfermagem da Faculdade Santa Casa e estagiário do hospital, Rafael Gimenez (24 anos), falou um pouco sobre a rotina do hospital, sua infra-estrutura, sua primeira impressão a cerca do atendimento, entre outros. Segundo o estudante, a população que freqüenta o lugar são essencialmente pessoas de baixa renda. “É acidente grave, pessoa encontrada na rua, vem tudo pra cá. (...) Tem muita gente aqui que vem de fora, lugar que eu nem imaginei... o pessoal vem de Minas Gerais porque lá não tem condição de tratar (...).”

Por dia, são cerca de 5.000 atendimentos ambulatoriais, 2.000 atendimentos de urgência em seus pronto-socorros, 151 internações e 150 cirurgias que só são possíveis graças aos 8.000 funcionários, 670 médicos especialistas e 424 médicos residentes da Irmandade da Santa Casa - segundo texto publicado na revista Acta Medica Misericordiae (vol. 3, nº 1, junho/2000).

Muito mais do que na grandeza dos números, a efervescência da Santa Casa é sentida em cada entrada, em cada metro de rua ao seu redor. Pela Rua Dona Veridiana, movimentada, barulhenta, o cinza decorrente de uma pista duplicada é capaz de tornar opacos todos aqueles jalecos que se contrapõem, cruzam-se, esbarram-se, mas que não deixam de desfilar sublimes compondo um mar branco nunca dantes visto. A elegância de lojas de produtos para deficientes físicos e um certo requinte nas barracas de rua, com seus relógios, óculos e brincos a cintilar sob um sol ardido de meio dia, atrevem-se a indicar que por aquela saída do hospital jorram médicos, visitantes e pacientes um pouco mais abastados.

Cruza-se o quadrilátero, depara-se com a rua Dr. Cesário Mota Jr. e um novo panorama: o sol sob o qual cintilavam relógios, agora, faz um cheiro marcante de fritura apoderar-se do ar e no lugar de tais acessórios são vistos refrigerantes, salgados e doces. A elegância das lojas da rua paralela converte-se em pontas de estoque de livros de medicina, não tão elegantes assim, que de absurdamente caros saem a preço de banana depois de anos da publicação. O mar de branco, aqui, não é mais dos jalecos e sim da fila de táxis esperando, esperando, esperando... O frenesi dos carros já não é mais tanto e seu som, como que diminuído de volume, permite que a voz de um dos vendedores entre pelos ouvidos. Onde está e quem deveria ser o único a ouvi-lo não ficam muito claros, mas o assunto sim: Deus. Curiosa a sua pregação logo em frente a um hospital. Curioso como tudo ali.

De acordo com as informações fornecidas novamente pelo estudante de enfermagem Rafael, a infra-estrutura do hospital é boa, dependendo do setor. “Eu digo muito boa no sentido de que, geralmente, não falta medicamento. Você precisa de uma cirurgia e geralmente as cirurgias são bem sucedidas. É um lugar que o paciente mesmo sai bem satisfeito. Pronto-Socorro o atendimento é muito bom, porém a demanda é muito grande. (...). Mas como um todo acho que, por ser do SUS, a Santa casa é muito boa.”. O estudante comenta ainda que, se caso necessitasse, gostaria de ser atendido no hospital, porém apenas em alguns setores, como o da ortopedia. Ele cita também que em relação às cirurgias, a Santa Casa é referência nacional e na América Latina. Além disso, comenta que sua primeira impressão a respeito do hospital foi boa e ela continua se confirmando, entretanto ressalta que, em sua opinião, o maior problema desse complexo hospitalar é a grande demanda de pacientes. Com relação ao SUS, o entrevistado disse que mudou de opinião quando entrou em contato com essa realidade e viu coisas boas sobre a saúde pública que geralmente não são veiculadas pela imprensa. Citou diversos programas específicos, como por exemplo, para pacientes psiquiátricos abandonados pela família e disse ainda que muitas pessoas não sabem dos direitos que tem e da ajuda que pode ser oferecida. “Tem muita gente que fica sem atendimento porque não conhece.”, diz o entrevistado.

Com relação aos taxistas, crianças, estudantes, transeuntes misturados em caravanas que entram e saem silenciosas – cortadas apenas pelo som de eventuais sirenes que ainda passam ligadas – pouco dizem sobre si, mas ilustram perfeitamente o batimento cardíaco daquele corpo vivo, cujas veias e artérias são inundadas todos os dias de vidas e mais vidas e das quais jorram histórias aos baldes. E é em busca delas que vamos deixar o outro da calçada; vamos atravessar a rua.

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